quarta-feira, 2 de agosto de 2017

EUA têm maior população carcerária do mundo

Descrição para cegos: imagem contém a bandeira dos Estados Unidos no fundo. Na parte superior esquerda, o nome Netflix e, no meio, o nome A 13ª Emenda.


Por Gabriel Neves


Tem-se a impressão, ou ao menos teve-se durante um tempo, de que conteúdos veiculados nas grandes indústrias do audiovisual possuem potencialidade para ser apenas balela hollywoodiana (lê-se narrativa clássica) para “encantar” um certo tipo de telespectador passivo. A Netflix, porém, está aí para mostrar que isso não é totalmente verdade, apresentando, em sua plataforma, o documentário A 13ª Emenda, que fala sobre uma política de segregação nos Estados Unidos e que põe, como uma dessas políticas, o encarceramento em massa - assunto de segurança pública.

O documentário de Ava Duvernay tem cerca de 100 minutos e aborda questões importantíssimas e decisivas para a vida de comunidades marginalizadas nos Estados Unidos. Além do encarceramento em massa, uso de mitologia para justificar decisões desproporcionais e a relação entre grandes empresas e o Estado com fins de exploração de determinadas pessoas também são alguns dos tópicos do longa.
Logo no início, o documentário trata de mostrar dados sobre o absurdo contingente de pessoas presas nos Estados Unidos, sendo um país com 5% da população mundial e 25% da população carcerária do mundo. Isto é o mesmo que dizer que 1 a cada 4 presos do mundo está no país onde o maior símbolo é a estátua da liberdade. Após isso, surgem as necessidades de se reduzir o sistema prisional e de um entendimento mais amplo sobre a sociedade.
“A história não é algo que acontece por acaso. Somos os produtores da história que nossos antepassados escolheram [...] mas estamos todos aqui juntos, os produtos destas escolhas e temos que entender isso, para podermos fugir disso [do mau julgamento dos fatos].”
A informação, dada no documentário, evidencia o primeiro corte do longa, trazendo a necessidade de uma compreensão histórica, para entender e debater a situação carcerária nos EUA, sendo sucedido pela explicação da origem da 13ª Emenda, que diz que todo homem é livre, acompanhada de uma cláusula que exibe a exceção à regra e põe em destaque o termo criminoso, o qual pode ter diferentes conceitos, dependendo do tempo histórico ou, mais ainda, das necessidades das classes dominantes da época.
Jelani Cobb, professor de estudos afro-americanos da Universidade de Connecticut, diz, por exemplo, que a escravidão, antes da guerra civil, era tida como um sistema econômico e, depois da guerra, foi abolida, causando crise econômica, negros livres e levantando uma grande questão: “o que fazer com essas pessoas e como reconstruir a nossa economia? ”
A partir dessa questão, a 13ª Emenda foi utilizada estrategicamente para prender os negros alegando-se, por exemplo, ociosidade ou vadiagem, e fazer deles escravos novamente, trabalhando de graça para o Estado e reconstruindo a economia do país.
Tudo isso preparou a época para a origem do mito da criminalidade negra, que associou a imagem do negro a uma propensão ao crime, por meio de representações na indústria do entretenimento, a fim de mantê-los trabalhando como escravos e sustentando o país das liberdades individuais.
O filme O Nascimento de uma Nação evidencia uma imagem depreciativa dos negros, como se fossem animais, além de romantizar a organização racista Klu Klux Klan. A obra de D.W. Griffith contribuiu para legitimar o preconceito, a segregação e a perseguição aos negros. Neste caso específico, segundo o próprio documentário, a vida imitou a arte, de forma em que negros passaram a ser mortos constantemente por pessoas incentivadas pela ideologia da Klu Klux Klan. Quando esses homicídios começaram a ser considerados inaceitáveis, houve um período de segregação institucional, o Jim Crow, um tipo de “terrorismo explícito” que retirava até o direito de votar dos afro-americanos, por meio de mudanças na legislação.
Em seguida, o contexto demandou a aparição de movimentos de ativistas dos direitos civis, buscando sempre a mudança do conceito de criminalidade e o entendimento de que os negros também são seres completos e complexos assim como os brancos, e não apenas pessoas violentas com imagens depreciadas por racistas e aproveitadores.
A conquista da Lei dos Direitos Civis beneficiou o povo negro e oprimido dos Estados Unidos. Infelizmente, no mesmo momento das conquistas dos direitos, a criminalidade aumentou, fazendo com que as pessoas associassem a conquista com as mazelas que estavam ocorrendo na sociedade.
Vieram anos muito difíceis acompanhados pela utopia neoliberal, sendo bem erguida, nos anos 70, por Nixon, que iniciou a política de “tolerância zero” e a guerra às drogas, já havendo um aumento considerável da população carcerária, saindo de 357.292, em 1970, para 513.900, em 1980.
Com Reagan, a guerra às drogas foi efetivamente implementada, sendo um disfarce para o combate às comunidades de cor. Nessa mesma época, o país estava passando por uma crise econômica, então Reagan cortou gastos na educação e saúde, por exemplo, mas aumentou em três vezes o orçamento para a polícia, fazendo com que a população carcerária desse um salto para um total de 759.110 presos.
A mídia banalizou a retórica da guerra às drogas, além de apresentar diariamente nos jornais um “desfile” de negros sendo presos e apresentados como “superpredadores”.
Os candidatos, na época, sabiam que, para ser eleitos, bastavam apoiar a política de tolerância zero e discursar contra os “criminosos”. Para ganhar as eleições, por exemplo, George Bush, presidente dos EUA de 1989 a 1993, pai de George W. Bush, fez uma campanha voltada ao combate à criminalidade, trazendo o caso Wille Horton para denegrir a imagem do adversário e recolocar na sociedade norte-americana o medo primitivo. Nesse período, houve outro aumento da população carcerária estadunidense, passando a um total de 1.179.200 presos.
Na mesma perspectiva e estratégia para ganhar a eleição para presidente, os Democratas se elegeram com Bill Clinton, uma vez que não era viável concorrer sem ser duro contra o crime. Após se eleger, o presidente sancionou algumas leis, como, por exemplo, “3 strikes”, que significava que depois de cometer três crimes o criminoso pegaria prisão perpétua.
Dessa maneira, como o sistema é muito perverso para a comunidade de cor, com menos Estado-social e mais Estado-penal, como diria Loic Wacquant, no livro “As prisões da miséria”, de 1999, obviamente as pessoas que mais eram um ponto fora da curva seriam mais “contempladas” com essa nova política de cárcere. No período, a população carcerária pulou para 2.015.300.
Apesar de toda essa política estar no campo do preconceito ou das vontades de uma classe dominante nos Estados Unidos, o problema vai se expandindo e criando ramificações. Como o mercado se aproveita de toda e qualquer maneira para fazer dinheiro, o encarceramento em massa mostrava-se uma mina de ouro para as empresas.
Grupos empresariais começaram a integrar o campo da política por meio do Conselho Americano de Intercâmbio Legislativo (Alec, na sigla em inglês), que fornece modelos de legislação para legisladores, fazendo com que projetos de lei criados pelas próprias empresas fossem apresentados e aprovados no congresso.
“Defenda seu território”, que permitia um proprietário atirar quando estivesse se sentindo ameaçado, e a já citada “3 strikes” foram leis aprovadas graças a essa estratégia, favorecendo empresas como a Wallmart, vendedora de armas e munições, e a CCA, empresa penitenciária.
Por fim, sendo parcialmente apresentada a longa história afroamericana nos Estados Unidos, percebe-se que, ao longo da história do país, houve uma política de segregação dos negros: escravidão, aluguel de presos, Jim Crow e encarceramento em massa são as demonstradas no documentário, deixando ainda a preocupação e a dúvida de qual será a próxima “política de segurança pública”.



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